plural

PLURAL: os textos de Neila Baldi e Noemy Bastos Aramburú

A carne
Neila Baldi 
Professora universitária

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"A carne mais barata do mercado é a carne negra

 Tá ligado que não é fácil, né, mano? Se liga aí

A carne mais barata do mercado é a carne negra. A carne mais barata do mercado é a carne negra. A carne mais barata do mercado é a carne negra. A carne mais barata do mercado é a carne negra Só-só cego não vê

Que vai de graça pro presídio. E para debaixo do plástico E vai de graça pro subemprego. E pros hospitais psiquiátricos. A carne mais barata do mercado é a carne negra dizem por aí

A carne mais barata do mercado é a carne negra. A carne mais barata do mercado é a carne negra A carne mais barata do mercado é a carne negra

Que fez e faz história segurando esse país no braço, meu irmão. O cabra que não se sente revoltado porque o revólver já está engatilhado E o vingador eleito, mas muito bem intencionado

E esse país vai deixando todo mundo preto, e o cabelo esticado, mas mesmo assim ainda guarda o direito

De algum antepassado da cor brigar, sutilmente, por respeito brigar bravamente por respeito brigar por justiça e por respeito (pode acreditar)

De algum antepassado da cor brigar, brigar, brigar, brigar, brigar. Se liga aí

A carne mais barata do mercado é a carne negra. Na cara dura, só cego que não vê. A carne mais barata do mercado é a carne negra

A carne mais barata do mercado é a carne negra. Na cara dura, só cego que não vê. A carne mais barata do mercado é a carne negra. Tá, tá ligado que não é fácil, né, né mano

Negra, negra, carne negra .É mano, pode acreditar, a carne negra"


A coluna de hoje poderia ser apenas a canção, mais nada. Os versos de A Carne, música composta por Seu Jorge, Ulisses Capelleti e Marcelo Fontes do Nascimento, e imortalizada na voz de Elza Soares, são a realidade de negros e negras neste país. 

A chance de uma pessoa negra ser assassinada no Brasil é 2,6 vezes superior a da não negra, segundo o Atlas da Violência 2021.

A violência, por vezes, vem com requintes de crueldade, como a morte do jovem congolês Moïse Kabamgabe (foto), espancado depois de cobrar pelo pagamento do seu trabalho. Ele veio pro Brasil fugido da guerra e da fome. Encontrou escravidão, racismo e xenofobia. Sim: escravidão, pois morreu ao cobrar o pagamento do serviço. Moïse Kabamgabe foi espancado e amarrado como os senhores dos engenhos mandavam fazer com seus escravizados.

Diante de tamanha violência, só consigo pensar na canção-denúncia citada acima. "Está difícil respirar" neste país governado pelas milícias - não por acaso, a morte se deu na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro.

Será que realmente eu sou uma pessoa boa?

Noemy Bastos Aramburú
Advogada, administradora judicial, palestrante e doutora

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O jovem trabalhador Moîse Kabagambe, 24 anos, era refugiado político no Brasil, tendo vindo da República Democrática do Congo, ainda criança, com os irmãos, achando que aqui teria um futuro melhor, uma vida digna. Neste sonho, trabalhava como ajudante de cozinha. Era "diarista" em um quiosque na praia da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. 

Como não havia recebido o pagamento de três diárias, naturalmente, foi cobrar. Entretanto, como resposta, dois homens vieram e ataram seus pés e mãos para trás, com uma corda, que também passava pelo pescoço, deixando-o totalmente imobilizado. Após, com um taco de beisebol começaram a lhe espancar nas costas e costelas até a morte. Aproximadamente 12 horas após o ato covarde e monstruoso, os parentes do jovem souberam que ele faleceu. 

O jovem foi enterrado no último domingo, 30 de janeiro, no cemitério de Irajá, na Zona Norte do Rio, sob protestos da população abalada com tamanha monstruosidade. O vídeo violento ainda circula pelas redes sociais. Pergunto se não havia ninguém com capacidade para salvar esse jovem. Ninguém ouviu seus gritos, já que apanhou até morrer!? Acredito que o corpo tenha passado pelo médico legista e seja aberto um inquérito policial para averiguar e imputar autoria, já que a materialidade é incontestável. 

Pergunto: será que haverá condenação e punição aos autores e ao "patrão"? Será que haverá uma boa alma para orientar a família a mover uma ação trabalhista e uma indenização para os herdeiros desse rapaz, e a consequente punição pela farsa dessa condição de "diarista"!? Será que o Brasil vai se retratar a esta família por tamanha violência praticada em nossa terra, uma vez que a Constituição Federal, pelo consagrado princípio da igualdade de direitos, garante aos estrangeiros os mesmos direitos conferidos aos brasileiros, garantias fundamentais da inviolabilidade do direito à vida, liberdade, segurança e propriedade, conforme artigo 5º !? 

Infelizmente, todos nós falhamos. Todos somos assassinos desse jovem. Está na hora de levantar a maçã que rola no mercado, aquela que não juntamos porque não fomos nós que derrubamos. Está na hora de sentirmos a dor do outro. Está na hora de ceder o lugar na fila para um idoso, não porque a lei manda, mas porque isso é o que queremos. 

Quando o mundo irá mudar!? Quando eu estacionar meu carro sem ocupar duas vagas. Quando o meu filho puder ser meu colega de trabalho sem que eu tenha que esconder algo dele. Quando eu herdar com meus irmãos e nossa amizade não sofrer nenhuma rusga. Quando nós, advogados de família, trocarmos de área por falta de cliente, porque pais e cônjuges não precisam de terceiros decidindo suas vidas. Isto é, o mundo só vai mudar quando eu mudar, e não quando o presidente ou as políticas públicas mudarem.

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